Memórias de um velho-menino
Parte II
Sempre gostei da boa musica sertaneja, aquela que fala de nossas raízes caboclas, do dia a dia do homem do sertão, do roceiro, do caipira, dessa gente simples que o modernismo vai engolindo pouco a pouco, descaracterizando velhos usos e costumes consagrados por gerações e gerações.
Em meu tempo de menino havia grandes interpretes, seja na moda de viola ou na música popular brasileira.
Nomes como Emilinha Borba, Marlene, Dircinha Batista, Vicente Celestino, Chico Viola, que morreu quando eu era ainda muito criança, mas deixou um legado importante para a música pátria, o trio Luizinho, Limeira e Zezinha chamados com razão de “embaixadores da musica sertaneja”, Cascatinha e Inhana, e muitos outros, mas vale lembrar também a dupla coração do Brasil: Tonico e Tinoco, de quem era fã e sabia algumas músicas cantadas por eles.
Meu pai era caminhoneiro, trabalhador, honesto e digno, viajando com caminhões difíceis de dirigir, volantes duros, câmbio seco, veículos fracos e quase sem nenhuma tecnologia avançada, comprando cereais no interior do Estado para vende-los em São Paulo e na volta trazendo produtos industrializados para a revenda na capital e nas cidades do interior. Viagens demoradas, sofridas, ausente da família por dias e dias, lutando para trazer o pão e o conforto aos familiares.
Comprava no interior os produtos agrícolas e trazia de volta uma carga variada composta por sal, arame, açúcar, cerveja, cujas garrafas eram embaladas em cones de palha e ensacadas, às vezes gasolina, querosene e álcool. Naquele tempo os combustíveis eram envasados em latas de vinte litros e acondicionadas duas a duas em um caixote de madeira para facilitar o transporte, visando também evitar furos e outros acidentes.
Meu pai havia construído uma casa grande o suficiente para abrigar a família numerosa, com um cômodo espaçoso para um comercio que pretendia montar em breve, buscando sua independência financeira, bem ali na esquina das ruas Catalão e Paraná, em meu querido e inesquecível bairro de Campinas. Até pouco há pouco tempo ela ainda estava lá, quase sem mudanças exteriores.
Em suas andanças pelo interior ele havia montado um armazém em Jandaia, cidade distante uns cem quilômetros da capital, pois era naquela região onde mais adquiria as mercadorias que levava para os grandes centros do país.
Como não podia ali morar, entregou a direção do comercio a um cunhado, irmão de minha mãe, com a intenção de posteriormente abrir o mesmo tipo de negocio em nosso bairro, na capital, mas seu sonho virou pesadelo quando meu tio perdeu todo o armazém no jogo de baralho, um prejuízo que abalou por muitos anos as finanças de meus pais.
O projeto nunca foi possível de ser realizado e o cômodo ficou ali, vazio, oco, como que a esperar por algo que nunca vem…
Meu pai, que nunca foi homem de jogatinas, bares ou grupinhos, viu todo seu gigantesco esforço se perder nas mesas de jogos, por haver confiado na honestidade de um parente.
Era justamente ali que eu fazia minhas viagens infantis, naquele espaçoso cômodo comercial vazio, eu era o rei e minhas fantasias ganhavam espaço e dimensão, convivia com meus amigos imaginários e com eles compartilhava minhas alegrias e tristezas. Não havia televisão na época e o rádio praticamente ignorava as crianças.
Em minha casa havia sempre muita gente, porque além dos pais, tinha os irmãos, éramos quatro, isso porque uma irmã, Maria Oneide, havia falecido a pouco tempo, mas os parentes de minha mãe viviam sempre por ali, então era avós, tios, tias, primos e primas, além dos empregados de meu pai, ajudantes de caminhão e a Nice, uma faz tudo que morava conosco, considerada como da família.
Um dia estava em meu reinado, quando caiu em minhas mãos um exemplar da Revista do Rádio, famosa publicação dos anos de ouro, décadas de 50 e 60 e ali estavam os cantores e cantoras que conhecia apenas de nome e pela voz.
No meio da revista estava estampada a foto dos irmãos sertanejos, Tonico e Tinoco, com os violões em mãos e um troço esquisito bem em frente a eles. Era um cano comprido com um objeto meio quadrado, retangular… fiquei ali pensando do que se tratava quando resolvi acabar com as duvidas perguntando a alguém mais velho sobre aquele objeto.
Encontrei a Nice na cozinha e fui logo mostrando a figura.
É um microfone, respondeu-me ela.
Microfone? Que diabo é isso? Pra que serve?
Pacientemente, a boa Nice explicou a serventia daquele troço, mas como não estava entendendo, levou-me até ao aparelho de rádio, ligou-o e explicou que era através do microfone que a voz saia ali no aparelho…
Fiquei encantado com aquilo… com que então era naquele treco que os artistas cantavam e falavam? Ora vejam só!!!
Passados alguns meses e chegou meu aniversário, quando meu irmão mais velho, Fioravante, falecido em 1953, presenteou-me com uma violinha ou cavaquinho, na época eu não sabia distinguir um do outro e nem importava, o que eu queria era mandar os dedos nas cordas e ouvir o barulho que faziam.
De repente veio uma ideia iluminada: e se eu arrumasse um microfone só para mim? Ai, eu poderia cantar as musicas do Tonico e Tinoco… assim pensado, assim executado.
Parti para o quintal em busca de materiais adequados ao meu objetivo, mas por mais que procurasse nada encontrava.
Entrei no quarto onde meu pai guardava as ferramentas e outras coisas para os caminhões e lá encontrei um pedaço de mangueira de radiador, que, apesar de ser redonda, caberia aos meus propósitos. Um pouco depois encontrei um pedaço de caibro de bom tamanho em cuja ponta a mangueira coube direitinho, pronto, meu microfone estava em minhas mãos, agora era só enfia-lo no chão e podia dar asas às minhas imaginativas cantorias.
Mas, eis que surgiu um problema: o microfone não podia ser instalado no cômodo, porque era todo cimentado e não havia como o fixar no chão…
Desolado, sai para o quintal já sentindo as amarguras que os artistas passam para vencer na vida… então vi o lugar apropriado: na lavanderia da casa, onde o chão era de terra batida.
Pequei um pequeno enxadão e comecei a cavar até uma profundidade que me permitisse fixar o microfone numa altura conveniente, corri até onde guardava meus brinquedos, pequei a violinha e voltei para o meu “estúdio”, não sem antes dar uma espiada na Revista para ver como meus artistas favoritos se portavam ante a engenhoca.
Aproximei-me do microfone, viola em mãos e soltei a voz:
“Montado a cavalo, cortando estradão,
Assim é a vida que leva um peão,
Não tenho morada, não tenho rincão,
Eu não tenho dono do meu coração.
Ai, como é bom viver,
Sozinho no mundo sem nada levar,
O sol vai saindo e eu já vou partindo,
E quando anoitece estou noutro lugar.
Montar em burro bravo é minha paixão,
Não encontro macho que jogue eu no chão,
Pra jogar um laço também sou dos bão,
Em qualquer rodeio eu sou campeão”
Se a letra está ou não correta, não importa, era assim que eu a cantava e quando terminei a cantoria fui despertado de meu enlevo debaixo de uma salva de palmas, assobios, palavras de “muito bem”, “que bonitinho”… era a família inteirinha, mais os serviçais, que estava todinha ali me assistindo e eu, envolvido com a cantoria, não havia percebido nadinha de nada… que vexame!!!
Aturdido pela surpresa, envergonhado, cara pegando fogo, com a timidez saltando pelos poros, enfiei a violinha debaixo do braço e sai chorando todos os desesperos havidos e por haver em direção ao meu castelo, meu reino, onde me enfiei e só sai depois que minha mãe foi lá me buscar, primeiramente com carinho, mas dado minha teimosia, veio a convicção final: ou você para com isso e vai lá pra sala ou então…
Com este episódio, o mundo perdeu um grande interprete porque nunca mais toquei a violinha e o microfone foi desarticulado e atirado para lugar incerto e não sabido por todo o sempre…