Memórias de um velho-menino
Parte I
Eu quero regressar no tempo…
Voltar a ser menino novamente andando sem compromissos pelas ruas encascalhadas da minha Campininha, conhecendo a todos e sendo também conhecido…
– Aquele lá é o filho do “seu” Rafael e da dona Emília…
Ver o Atlético jogar no Antônio Accioli com aquele time fantástico, onde os jogadores eram amadores, jogavam por amor ao clube.
Epitácio, o Pingo de Ouro, ponta direita pequeno, magro, veloz e driblador; Fábio, centroavante goleador, quase um tanque; Fabinho, o Bugre, impetuoso, goleador e terror das defesas adversárias; Paulistinha, meu primo e notável escritor goiano, Waldomiro Bariani Ortêncio, goleiro com grande elasticidade, Tonho Matador, que morava lá pras bandas do matadouro municipal e tinha um canhonaço na perna direita; além de outros nomes que a memoria teima em não lembrar, mas tão importantes quanto os citados, davam um espetáculo de grande beleza plástica em campo, principalmente quando enfrentava o Goiânia Esporte Clube que também tinha uma seleção de excelentes jogadores, como Manduca, beque central que lembrava, pelo porte o grande Domingos da Guia; Lili, que jogava o fino da bola e outros.
Lembrar de um jogo entre as duas equipes, ali mesmo no Accioli, com arquibancadas em alvenaria destinadas aos torcedores do Dragão Campineiro, enquanto que para os adversários eram feitas em madeira, tábuas como bancos, verdadeiro poleiro… e naquele dia o Estádio inaugurava uma cerca de ripas separando o campo da assistência.
Dava gosto de ver as ripas enfileiradas regularmente pregadas nas travessas de caibro, iguaizinhas, uniformes, com altura de um metro e meio, mais ou menos, pontas aparadas para evitar machucar alguém, uma beleza…
A rivalidade era imensa e não raro acabava em pancadaria, mas a cerca estava ali exatamente para evitar que isso acontecesse, contendo os torcedores, o que provou ser o contrário, porque, em dado momento da refrega surgiu uma discussão entre os jogadores, empurra daqui, segura dali, a turma do “deixa disso” entrando em cena contendo os ânimos, mas deixando o rastilho acesso…
Dona Maria, uma senhora de certa idade, parecia ter cadeira cativa dentro do campo, porque, em todos os jogos, naquele Estádio, ela colocava sua cadeirinha estrategicamente atrás do gol adversário, sentava-se, abria sua sombrinha e torcia como ninguém, se exaltava, levantava da cadeira e esbravejava contra o juiz, os bandeirinhas e principalmente contra o pobre goleiro adversário, condenado a ouvir as imprecações da velha torcedora, por dá cá essa palha…
A partida transcorria muito disputada de lado a lado, já no segundo tempo, quando o juiz marcou uma penalidade máxima contra o elenco atleticano… aí, a vaca foi pro brejo!!!
A primeira a se indignar foi dona Maria que, lá de seu banquinho, tratou de destratar a digníssima mãe do juiz, brandindo sua sombrinha. Parece que foi o aviso para o caos…
Ânimos exaltados de ambos os lados, tentavam impor ao pobre árbitro suas vontades, dedos em riste, semblantes carregados, jogadores se dividiam entre o “vai cobrar, sim senhor” e o “mais num cobra nem que a vaca tussa”, “seja homem, seu juiz” e a resposta “se for homem, manda bate, quero vê…”, e por ai afora.
De repente, um jogador do Goiânia pega a bola e coloca na marca do pênalti, mas um adversário foi lá e deu uma bicuda na redonda que tomou rumo incerto e não sabido.
Dai para o primeiro tapa foi só um instante e o pau comeu feio dentro do campo. Quando ambas as torcidas viram a confusão resolveram participar e partiram para a briga, onde as citadas ripas tomaram parte importante na refrega, porque era só chutar e ela saia na mão do beligerante torcedor, virando uma arma perigosa e até mortal.
Em breve, nada mais se via do que um campo de batalha, tapas, chutes, bofetões, ripadas nas costas, na cabeça, ripa com ripa, tapa com tapa e uma indefectível sombrinha malhando sem parar o pobre goleiro do Goiânia, que preferiu correr para o outro lado do campo para se livrar da enraivecida torcedora, mas dona Maria era persistente e perseguia o arqueiro em todo o percurso, verdadeira volta olímpica de guarda-chuvadas a torto e a direito, enquanto proferia os mais deslavados palavrões contra o desvalido jogador.
Desesperado, ele procurou refugio entre dois soldados se escondendo atrás dos mesmos, até que a raivosa mulher parou ante as autoridades de sombrinha toda entortada e molambenta, em punho, de tanto bater nas costas do pobre coitado.
A pancadaria durou bem uns quinze minutos até que a policia conseguisse terminar com a contenda, sobrando como saldo vários feridos e uma cerca novinha completamente destruída… e o pênalti não foi cobrado, o juiz jogou o apito no chão e se retirou, a partida não terminou e jamais foi recomeçada.
Depois, já adolescente – se bem que naquele tempo a gente continuava a ser moleque até os 16, 17anos – ver em campo um timaço que ganhou o primeiro titulo nacional para um clube goiano, a Taca de Integração Nacional, creio que em 1967, cuja escalação a memória me falha, mas se não estiver confundindo as equipes, tinha Pedro Bala no gol; a zaga formada por Gadia, Osvaldinho, Carluccio e o lateral esquerdo não recordo.
Paulo César e Amestrado, aliás, estes dois formaram, sem dúvida, o mais brilhante meio de campo do futebol goiano.
Luizinho, ponta direita que foi vendido para o Vasco da Gama, mas em um jogo contra o São Paulo teve a perna quebrada por uma entrada violenta do Paraná e abandonou o futebol.
O centro avante era o Jair Porrete, além do ponta esquerda, Barrica, driblador, gordo, festeiro, mas inegavelmente um grande jogador e o Bertolo, meia de ligação extraordinário.
Em 1958, quando o Brasil se sagrou campeão mundial na Suécia, o Vasco da Gama fez uma excursão por gramados goianos jogando contra os dois principais times da capital, o Goiânia e o Atlético.
O Vasco da Gama tinha um timaço e dentre os jogadores lá estava Vavá, centro avante goleador; Pinga, ponta direita que era um inferno para as defesas adversarias; Brito, Abel, enfim, um time de respeito.
Jogou contra o Goiânia e ganhou de 5 ou 6 a zero e contra o Dragão conseguiu vencer por três a zero com uma atuação fantástica de Pitinho, um dos melhores goleiros que vi jogar em toda minha vida. Pegou tanta bola que foi cumprimentado pelo Vavá.
Enfim, tempos bons, onde a meninada podia jogar bola na rua, brincar de pique até tarde da noite e nada de errado acontecia, era só alegria, paz e amizade entre os vizinhos e parentes.
Depois continuarei minha viagem de regresso ao tempo…