A CAÇADA AO SACI PERERÊ
No sitio de meu pai, como já dito antes, não havia energia elétrica assim como nenhum curso d’água, seja rio, riacho ou mesmo rego, apenas um poço, que era chamado àquele tempo de cisterna, e o precioso liquido era baldeado com o auxilio de um sarilho de madeira.
Esse poço era profundo e tinha uma espécie de barro branco chamado de “tabatinga”, com boa liga, com o qual meu pai aterrou o quintal em volta da casa, principalmente a área da cozinha.
Aquilo era varrido sistematicamente e sempre estava limpinho e como o barro era esbranquiçado, nas noites de lua clara parecia refletir ainda mais a luminosidade do luar.
Era ali que os adultos se sentavam numa roda de conversas que varavam as horas e a garotada brincava, até o momento em que começavam as histórias de assombração, fantasmas, almas penadas, mula-sem-cabeça e sobre um negrinho sapeca, muito esperto, de uma só perna, arteiro que só ele, fumando um cachimbo de barro e com um gorrinho vermelho na cabeça, uma espécie de barrete: o saci-pererê.
A partir de então, cessavam as correrias e algazarras porque a garotada se acotovelava em volta dos adultos, respiração suspensa, olhos arregalados, ouvidos atentos a qualquer barulho externo, pois, em nossa fértil imaginação, poderia algum ente fantástico daqueles que ali desfilavam nas prosas, contos e causos, de repente dar o ar de sua graça por ali…
Mas os causos que mais prendiam minha atenção era sobre o tal do saci-pererê, porque uma hora ele fazia azedar o leite no latão, só de pirraça; outra vez, escondia o cachimbo dos idosos; às vezes dava nós na crina dos cavalos, difíceis de desatar, enfim, era um tormento, mas não machucava ninguém e, ao que pude entender, ele não fazia as estripulias por maldade, era mesmo um sacana de mão cheia.
Daquelas conversas, às quais eu prestava atenção e prendia nas palavras dos mais velhos, me encantava com as artimanhas daquele negrinho arteiro e boa praça.
Fiquei sabendo que ele nasce dentro de um gomo de taquara, anda num redemoinho e o maior segredo: seu gorrinho vermelho, do qual não se separa por nada deste mundo.
Os mais velhos diziam que quem conseguisse tomar seu gorro teria o saci à sua disposição, ou seja, aquele ente fantástico seria escravo da pessoa.
Quase ao final do pequeno sitio havia uma bela moita de taquara que se estendia a outras propriedades, ou seja, ali estava o ambiente propicio ao meu herói de uma perna só, bastava apenas encontrar uma moita no meio do taquaral, numa sexta-feira, 13, munir-me de uma peneira e esperar o primeiro redemoinho que surgisse de dentro da moita e eu teria meu saci à minha disposição.
Observava com avidez as folhinhas dos calendários em busca daquela data específica e notava, desesperado, a dificuldade em encontrá-la ao correr dos meses, graças à sua raridade.
Finalmente, depois de longos meses de espera, eis que surge a oportunidade e justamente durante as férias escolares… era tudo que esperava e não via a hora de embarcar no caminhão de meu pai com a família para passar o fim de semana no sitio.
Mal o veiculo estacionou em baixo de uma mangueira e eu saltei da carroceria, com o risco de ferimentos sérios, afinal era um moleque que nem na adolescência ainda havia entrado, corri até o paiol e peguei a peneira, usada para abanar cereais, e me mandei para os lados do taquaral, sôfrego, aflito, com receio de já ter nascido um saci antes de minha chegada ao local.
Era uma peneira grande, com armação em arame e bordas de bambu, forte e firme, ideal para a abanação, isto é, os cereais como arroz, que àquela época era adquirido nas máquinas de beneficiamento, tinham sempre um pouco de munhas, palavra que quer dizer restos de palhas, enquanto o feijão e o milho, processados ali mesmo, colhidos na pequena roça que servia para ajudar na sustentação da família, também apresentavam as mesmas impurezas.
O cereal era colocado na peneira e a pessoa agitava em movimentos de vai e vem, para cima e para baixo, jogava o conteúdo para o alto e com isso as munhas eram levadas pelo vento, ficando apenas o cereal no fundo do instrumento.
Observei atentamente a peneira e a achei forte o bastante para capturar o danado do negrinho folclórico e colocá-lo dentro de uma garrafa escura, adrede preparada com rolha de sabugo, conforme as exigências ouvidas dos mais velhos.
Fiquei na expectativa até quando ouvi minha mãe chamando para o almoço. Amoitei meus apetrechos para que ninguém os encontrasse e, contrariado, fui para casa, onde praticamente engoli a comida e parti, célere, para meu ponto de observação.
Lá pelo final da tarde, eis que surge um pequeno redemoinho no meio do taquaral…
Com o coração batendo descompassado, querendo saltar pela boa, mãos frias e respiração ofegante, suor escorrendo abundantemente, pequei a peneira e a garrafa e desabalei a careira em direção ao meu alvo tão esperado…
Quando cheguei junto ao redemoinho joguei a peneira e me atirei ao mesmo tempo, visando segurar as bordas e impedir que a presa escapasse, mas, para minha decepção, o saci não estava debaixo da peneira e a garrafa escapou-me das mãos, bateu em uma pedra e se partiu em milhares de pedaços e com eles minhas esperanças, meus sonhos, restando apenas uma extrema tristeza e desilusão…
Decepcionado, lagrimas escorrendo pelas faces, arrasando atrás de mim não só a peneira, mas também uma frustração imensa, voltei para casa, guardei o utensílio no paiol, puxei um balde d’água do poço e ali mesmo, no terreiro, com uma caneca, tomei um banho demorado, parecia que a cada esfregada que dava no corpo, queria tirar toda aquela tristeza imensa e fazer com que saísse na água que escoria para o chão.
À noite, não participei da roda de conversas e me deitei cedo, sem, no entanto, conciliar o sono. Revirava no colchão de palha de um lado a outro, angustiado, nervoso, revoltado e… chorando todas as amarguras acumuladas pela decepcionante caçada.
Fiquei arredio o dia inteiro sem participar das brincadeiras com os primos, sentado à sombra do paiol, sozinho com meus pensamentos e frustrações, até que meu tio, Geraldo, irmão de minha mãe, sempre muito atencioso e amigo, observou minha tristeza e veio conversar comigo.
Sentou-se em um toco de madeira bem próximo a mim, espichou sua pequena e um pouco gordinha figura como quem espreguiçasse e depois de algum tempo puxou conversa.
– O dia hoje ta quente, né?
– É, ta… – tartamudeei com um fio de voz.
– Você ta meio triste, posso saber por que?
– Ah, deixa pra lá… é coisa atôa…
– Coisa atôa na sua idade? – em sua voz havia algo que me convidava ao diálogo.
– É, tio, coisa atôa, to triste, só isso…
– Mas você deveria era rir, como é que uma criança fica triste?
– Ficando…
– Bom, mas eu queria ajudar, posso?
Resolvi desabafar e contei de minhas desventuras com a frustrada caçada ao saci-pererê.
– Cadê a peneira – perguntou interessado no assunto.
Entrei no paiol e sai de lá com o instrumento e confesso que estava um pouco rabugento com aquele assunto, mas atendi ao pedido do tio.
Quando ele viu a peneira deu uma risadinha – o que me irritou mais ainda – sacudiu a cabeça negativamente varias vezes, pegou o malsinado utensílio e perguntou compreensivamente:
– Você usou esta peneira?
– Foi, uê, num tinha outra…
– Aqui está o motivo de você não ter conseguido pegar o danado do saci…
– Onde? – perguntei sem entender onde ele queria chegar.
– A peneira… com este tipo de peneira você jamais vai pegar um saci…
– Por que?
– Porque tem que ser uma peneira feita de taboca, taquara ou de bambu, todinha, até a malha. Com esta de arame, não, de jeito nenhum…
– É mesmo?
– Claro…
– E como é que o senhor sabe disso?
– Porque eu peguei um saci quando era da sua idade.
Aquela revelação estourou em meus ouvidos como uma bomba e me deixou aturdido por alguns segundo.
– O senhor, o que?
– Peguei um saci e mantive ele preso comigo por alguns dias, depois soltei, achei covardia manter ele preso…
– Mentira… respostei incrédulo.
– Verdade, por que eu vou mentir pra você?
– Mas… – a incredulidade ainda marcava minhas palavras – por que o senhor soltou o saci? Por que não ficou com o gorro dele? Por que…
As perguntas saiam aos borbotões, como se me sentisse participe daquela aventura e pudesse, com isso, compensar minha caçada infrutífera.
Meu tio, calmo, como sempre o fora, deixou que eu desatasse todos os nós que prendiam minha alma naquela frustração dolorida e depois respondeu com seu jeito todo peculiar de falar, com se medisse cada silaba e palavra.
– O saci-pererê não pode ficar preso, porque ele é um elemento da natureza, tão importante como qualquer outro, e um só que fosse retirado de seu ambiente, seria um desastre para todas as coisas da vida.
– Como assim?
– Ele exerce um papel fundamental na natureza, pois com seu redemoinho, remove os detritos de um lugar e joga em outro fazendo a fertilização do solo.
Então fiquei sabendo que todos os seres fantásticos, místicos, tinham uma função peculiar na natureza e que interessava diretamente ao ser humano.
Enquanto pude curtir o sitio, tentei capturar o saci, agora com uma peneira apropriada, mas nunca mais apareceu outra oportunidade como aquela.
Conta a lenda que o saci-pererê, quando surgiu no sul do Brasil, era um menino endiabrado, arteiro por excelência, tinha as duas pernas, moreno e possuía um rabo com o qual espalhava as cinzas dos fogões.
Dizem que perdeu uma das pernas em um jogo de capoeira na África e o rabo acabou também desaparecendo com o passar dos tempos.
Mas, a principal característica do saci é a travessura, ele é muito brincalhão, diverte-se com os animais e com as pessoas. Por ser muito moleque ele acaba causando transtornos, como: fazer o feijão queimar, esconder objetos, jogar os dedais das costureiras em buracos.
Hoje vejo com tristeza o quanto esse personagem de nosso folclore está esquecido, relegado à memória dos mais antigos, perdendo com isso as atuais gerações, contato com ser tão fantástico e importante para nossa cultura.
Nossa juventude e crianças preferem festejar o Halloween, uma festa tétrica, horrível, feia, sem qualquer vinculo com nossa história e sepultam o saci-pererê, a iara, a cuca, a mula-sem-cabeça, o boto-cor-de-rosa, o nêgo-d’água, o matinta pereira (um dos nomes do saci), o boitatá, o mapinguari, enfim, matam nosso folclore, impiedosamente, e nos transformam em um amontoado de gente sem memória, sem história, sem mitologia, sem folclore.