Não há como dissociar o homem de seu destino, qual seja a perfeição relativa ao Todo Perfeito, contudo esse destino não está nas mãos de Deus ou do demônio, conforme nos quer fazer crer as religiões, por não existir determinismo ou fatalismo na evolução humana.
A faculdade de pensar, de raciocinar, colocou o homem no topo da escala evolutiva, acima de seus companheiros de jornada terrestre, os chamados irracionais.
Sendo o homem um espírito encarnado dotado dessa faculdade, está sujeito às intempéries que a vida oferece a cada passo em seu caminhar, gregário na maior parte das vidas e, às vezes, solitário.
René Descartes chegou ao ápice da questão ao concluir que, por deter o poder de raciocinar, o homem logicamente é um ser existente, ou seja, penso, logo existo, mas o existir não está diretamente ligado ao viver. Existir é ser e viver é ter, quer dizer, o homem tem na vida a oportunidade de ser algo mais do que um simples vivente, exatamente por pensar. Ele existe porque pensa e o pensamento envolve o desenvolvimento da inteligência e essa, o da razão. Assim, interligando-se, essas conquistas evolucionais, acabam por determinar parâmetros que levam às ações e pensamentos, que podem tornar o homem ditoso ou desgraçado em suas romagens terrenas, encarnação após encarnação, vida após vida.
Essa dualidade, graça e desgraça, decorre da Liberdade de Consciência, maior conquista da creatura face ao seu Creador, que em sua infinita misericórdia, proporciona oportunidades incontáveis para que o homem possa evoluir, a despeito de sua condição de réprobo de si mesmo.
A posse da razão é o cadinho depurador das ações divisionárias dessa dualidade, porquanto tudo que é confrontado com a razão recebe a chancela do certo e/ou do errado. Essa, por sua vez, amolda-se à moral cientifica, confirmando seus estamentos filosóficos.
O Livre Arbítrio vem de ser exatamente o determinante da Liberdade de Consciência, a encruzilhada da moral e da razão, do pensar e do agir.
O Livro dos Espíritos ao comentar o tema nos relata na questão nº 843:
“ 843. Tem o homem o livre arbítrio de seus atos?”
“Tendo a liberdade de pensar, tem igualmente a de agir. Sem o livre arbítrio, o homem seria máquina.”
A cada ação, corresponde uma reação, é a Lei das Causas e Efeitos. Dotado da liberdade de pensar tem, o homem, automaticamente, a de agir, mas ao direito de agir conforme sua liberdade de consciência, corresponde o dever de circunscrevê-la aos crivos da razão e da moral, ou seja, de acordo com os atos praticados será glorificado ou execrado.
Um dos exemplos mais marcante de livre arbítrio é encontrado nas páginas da Bíblia, mais precisamente na saga de Adão e Eva, que como sabemos, trata-se única e exclusivamente de personagens fictícios utilizados como símbolos do aparecimento do homem na face da terra, não como elemento oriundo da teoria criacionista, mas dentro de conceitos evolucionistas por excelência.
O paraíso ou éden é a inocência oriunda do não pensar e, consequentemente, não saber. A árvore da vida no meio do paraíso é o marco evolucional do homem que busca o conhecimento apesar das dificuldades que a vida lhe interpõe a cada passo, pois disse Deus:
“16. E deu-lhe esta ordem, e lhe disse: Come de todos os frutos das arvores do paraíso. 17 Mas não comas do fruto da arvore da ciência do bem e do mal. Porque em qualquer tempo que comeres dele, certissimamente morrerás. (Gênesis, 2: 16 e 17)”
Observe-se que a arvore proibida era a da ciência do bem e do mal, ou seja, era a do conhecimento que faria com que o homem pudesse discernir em suas ações aquilo que lhe traria alegria e o que poderia, ao mesmo tempo, lhe causar a dor e os tormentos da alma.
A serpente é o símbolo da inteligência e somente através dela é que se pode atingir o conhecimento. A narrativa bíblica nos mostra que Eva, formada de uma parte de Adão, o homem, portanto mais evoluída, argüiu de si mesma sobre a morte e chegou a conclusão de que, caso comesse da fruta proibida, certamente não morreria, mas viveria com mais intensidade, dado haver adquirido o conhecimento.
“4. Mas a serpente disse à mulher: Bem podeis estar seguros que não haveis de morrer: 5 porque Deus sabe que tanto que vós comerdes desse fruto, se abrirão vossos olhos; e vós sereis como uns deuses conhecendo o bem e o mal. (Gênesis, 3: 4 e 5)”
Deus, como creador, conhece sua creatura, e sabendo-a dotada de recursos necessários ao pleno desenvolvimento mental, moral e espiritual, coloca ao seu alcance o conhecimento para que possa discernir entre o certo e o errado. Eva, simbolicamente, instigada pela inteligência, usou do livre arbítrio e colheu o fruto e viu que era formoso e agradável à vista e o comeu, ou seja, desafiou a proibição, o cerceamento da liberdade de consciência que impede a evolução plena, figura de retórica que nos leva aos desmandos dos lideres religiosos de todos os tempos, que sempre utilizaram do pecado para determinar o que era proibido ao conhecimento do ser humano, e Eva tomou conhecimento que, além do paraíso existia a vida e que, como ser pensante, poderia, ela, determinar os rumos dessa vida.
Adão e Eva simbolizam a humanidade, o homem creado simples e ignorante, mas que dispõe de elementos naturais, tanto à sua volta quanto em si mesmo, para crescer intelectualmente, despertando, a partir da inteligência (serpente) o desejo de si conhecer para melhor aquilatar suas ações, porque delas depende sua própria evolução.
A maldição que Deus jogou sobre os ombros de Adão e Eva, retrata as dificuldades que a humanidade enfrenta em sua marcha evolutiva, porque, primeiramente, Ele se dirigiu à serpente, como elemento da discórdia. Disse Ele:
“14 E o Senhor Deus disse à serpente: Pois que assim fizeste, tu és maldita entre todos os animais e bestas da terra: tu andarás de rojo sobre teu ventre, e comerás terra todos os dias da tua vida. 15 Eu porei inimizades entre ti, e a mulher; entre a tua prosperidade e a dela. Ela te pisará a cabeça e tu procurarás morde-la no calcanhar.”
Esta frase bíblica tem sido usada pela humanidade, não em seu significado simbólico, mas como se fosse uma condenação verdadeira ao animal serpente, por isso as cobras são caçadas impiedosamente e tidas como criaturas demoníacas. Mas o relato é simbólico, a inteligência é apanágio superior, por isso maldita entre aqueles que não a possuem ou que não podem usufruir plenamente de suas propriedades intelectivas.
A serpente sempre desempenhou um papel importante e multiforme como símbolo. Na China é o símbolo yin (de yin e yang); na Índia, as najas, são consideradas como mediadoras entre os deuses e os homens; a Kundalini, é simbolizada como serpentes que se enroscam desde a base da coluna vertebral até a cabeça, considerada a sede da energia cósmica; no Egito, conheciam-se diversas deusas serpentes; além disso, foi nesse país que os arqueólogos encontraram o símbolo do Ouroboros, a serpente que morde sua própria cauda, símbolo do que é eterno, que não tem começo e nem fim; e, finalmente, no culto a Asclépio (ou Esculápio), a serpente tem um papel importante como símbolo da auto-renovação.
Quanto a maldição de comer terra todos os dias, observemos que, figurativamente, a terra não é alimento exclusivo da serpente, pois que toda a humanidade se nutre da terra, e a inimizade entre a inteligência e a mulher, ficou no campo das conjeturas masculinas dominantes onde a mulher era considerada como ser inferior e dominada pelo marido, conforme o relato bíblico (Gênesis, 3: 16), onde Deus determinou à mulher que os trabalhos de parto seriam multiplicados para que seus filhos fossem paridos com dor e que ficaria debaixo do poder do marido.
A Adão, Deus determinou que ele deveria tirar da terra o sustento à força de seu trabalho, comendo o pão oriundo do suor de seu rosto.
Não há progresso sem trabalho e não há paz sem a firme determinação de conviver respeitando as diferenças entre os povos. Assim é a humanidade que ainda busca se libertar dos liames e tentáculos dos poderes religiosos e seculares, desatando os nós górdios do dogmatismo insensato, para alçar vôos plenos da liberdade de consciência, regulando-a pelo livre arbítrio, utilizando a razão para crescer e evoluir sempre, em busca da perfeição, baseando seus atos na mais pura moral e na mais elevada consciência de que é um junto ao Pai, mas sabendo que o Pai é maior que todos.
Walter de Oliveira Bariani, P G M
Obras consultadas:
O Livro dos Espíritos, IDE –Editora, Araras, SP, 153ª edição, junho 2004.
Tese –Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa
Dicionário de Símbolos – Erder Lexikon